Que a esquerda, de um modo geral, tenha levado um abanão não é propriamente surpreendente, considerando o que tem vindo a acontecer nos últimos anos. Escândalos de corrupção, degradação dos serviços públicos, falta de respostas concretas para a crise da habitação, um SNS à beira da rutura e um sistema educativo que parece cada vez mais à deriva. A paciência dos portugueses foi-se esgotando, num crescendo de descontentamento que culminou agora nas urnas.
O que realmente surpreende é a forma abrupta e quase desesperada como muitos portugueses parecem ter trocado um extremo pelo outro, num piscar de olhos. O discurso populista e radical, que promete soluções rápidas para problemas complexos, seduz quem já perdeu a fé na política tradicional. Mas é aí que surge a grande questão: que povo é este que se diz católico, que se orgulha de princípios como "amar o próximo", mas que, na prática, se rende a um discurso que divide, segrega e incita ao ódio?
Vivemos num país onde a fé e a moral cristã são bandeiras levantadas em muitos discursos, mas onde a empatia parece ter sido esquecida à porta das igrejas. Fala-se em valores, mas esses valores evaporam-se quando o alvo é o imigrante, o pobre, o vizinho que pensa diferente. É fácil amar o próximo quando ele se encaixa no nosso padrão de aceitabilidade; difícil é amar o próximo quando ele desafia as nossas convicções ou quando a sua presença nos confronta com a nossa própria insatisfação.
Sim, é legítimo estar descontente. É justo exigir mudanças e criticar quem está no poder. Mas será que a solução passa por abdicar dos valores fundamentais em nome de quem promete, de forma agressiva e fundamentalista, "resolver" os problemas de Portugal? A História já mostrou... e não uma vez, mas várias... o preço a pagar por ceder a promessas de força e autoritarismo. Será que estamos dispostos a pagar esse preço de novo? Será que, em nome da revolta, estamos a abdicar da nossa humanidade?